A experiência de leitura
na internet é fragmentada, uma alternância constante entre vários
tipos de texto, eles mesmos fragmentados.
Com a popularização da
internet, a literatura passará por uma revolução. O romance
morrerá e cederá espaço ao conto, que terá melhor aceitação
para um público com déficit de atenção, adaptado à velocidade
das novas tecnologias. Mas até mesmo o conto estará irreconhecível
daqui a cinco ou dez anos, deformado pelo impacto do hipertexto e dos
novos suportes eletrônicos de publicação.
O hipertexto — texto
que explora o recurso do hiperlink, permitindo acesso instantâneo a
outras partes desse mesmo texto ou de outros textos e conteúdos —
enterrará a linearidade e quase todas as estruturas narrativas
fundamentais existentes hoje. Os múltiplos caminhos de leitura de “O
jogo da amarelinha” passarão a ser regra, ramificando-se para além
dos limites físicos do livro de papel. Os limites de um livro
poderão ser um site, um conjunto de sites, a internet inteira, o
mundo inteiro. A participação do leitor não se reduzirá a virar
páginas ou a escolher onde clicar — ele poderá reescrever
trechos, adicionar ou apagar conteúdo, intervir de maneiras ainda
não previstas. A figura do narrador, tão tematizada e submetida a
experiências na literatura pós-modernista, atingirá o paroxismo; a
autoria deixará aos poucos de fazer sentido, até ser abolida.
A experiência de leitura
na internet é fragmentada, uma alternância constante entre vários
tipos de texto, eles mesmos fragmentados. As tradições da prosa
literária, picotadas e embaralhadas, vicejarão no miniconto, no
microconto, no aforismo, nas tiradas irônicas, no trocadilho
certeiro, na informação telegrafada.
A nova narrativa será
multimídia. Transitaremos livremente entre texto, voz, música,
vídeos, animações, fotos, ilustrações, diagramas. Todas as
linguagens existentes hoje serão uma só, e com ela virão novas
formas de narrar, de insinuar um subtexto, de construir elipses e
significados.
A linguagem escrita, por
fim, e se tornará mais sucinta e veloz; novos jargões, predomínio
de siglas e contrações, emoticons, promiscuidade inédita entre
alfabetos e idiomas. A linguagem das crianças nos chats é um
prenúncio da nova linguagem literária.
Descontando alguma
pitadinha de sarcasmo, os cinco parágrafos acima descrevem um
conjunto de previsões que apareceram na virada do milênio, com o
surgimento e popularização da web, e vigoraram em muitos sites
literários, artigos de imprensa, discussões acadêmicas, e também
na mente de muitos novos autores motivados por preocupações
formais. Parte delas sobrevive ainda hoje, em versões mais diluídas
ou atualizadas.
A essa altura do
campeonato, com um distanciamento de mais de década, já não se
pode ignorar que a “revolução literária causada pela internet”
não ocorreu. Ou até ocorreu, mas não no sentido de modificar a
maneira como escrevemos. Ocorrem mudanças profundas na maneira como
lemos, consumimos e debatemos a literatura. Todavia, mesmo pessoas
como eu, que fizeram parte da (perdão) “geração internet” mas
nunca chegaram a comprar a ideologia da esperada revolução, às
vezes ficam perplexas com o fato de que um conto ainda é um conto e
um romance ainda é um romance, de que a evolução das formas e
linguagens literárias segue atrelada aos mesmos cânones e
tradições, alheia aos novos recursos que a tecnologia torna
disponíveis.
Muitas tendências que
costumavam ser associadas à web, como a escrita autocentrada (o que
lá por 1998 alguns chamavam de “egotrip”), podem ter sido
incentivadas pela tecnologia até um ponto, mas são decorrência
lógica do modernismo, de uma sociedade individualista, e por aí
vai. “Por que o romance ainda está aí?” é uma pauta
recorrente, e o fato é que está mesmo, nas listas de mais vendidos,
nos mais lidos do Skoob, nas premiações, nos favoritos da crítica,
nos fenômenos “Harry Potter” e Roberto Bolaño, na constatação
de que a literatura de confronto pouco recorre ao digital para tentar
sacudir o cânone e os leitores.
Mas é um erro dizer que
a nova narrativa dos tempos digitais não se realizou. Ela germinou
com os primeiros micreiros, se ramificou nos e-zines e blogs, e hoje
se encontra sobretudo nas redes sociais, que incorporaram quase todas
aquelas previsões em suas timelines. Quem intuiu aquela nova
literatura intuiu o Facebook e assemelhados, os verdadeiros reinos da
narrativa fragmentada, multimídia e quase instantânea, fundamentada
no hiperlink, onde todo usuário é um pouco personagem e contador de
histórias. A unidade estética e o senso de narrativa de alguns
Tumblrs são admiráveis.
Enquanto isso, o conto e
o romance habitam seu velho jardim, e sabe lá quantas voltas a
História teria de dar para torná-los substituíveis. Talvez haja
algo perene em suas respectivas formas, cadências e poderes
imersivos, características em grande parte imunes às novas
tecnologias de comunicação, e das quais não abriremos mão tão
facilmente.
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